domingo, 10 de junho de 2018

PLATAFORMA

Em 2001 o rosto de Michel Houellebecq ainda não tinha desistido do mundo, mas  sem o saber já  estava condenado à feiura. Em 2001 o cinema pariu Harry Porter (parto induzido), o Jorge Amado morreu, explodiu uma bomba na BBC, aconteceu o que aconteceu no 11 de Setembro, o Boavista ganhou o campeonato e o Michel Houellebecq mandou foder a literata vidinha editorial com o livro Plataforma.
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É um livro escrito com os colhões do escritor, que sobressaem entre os escombros anatómicos, mais do que dedos que foram às teclas ou a cabeça que deu as ordens. 
Andava eu no último sábado a varrer com os olhos as promoções do departamento de literatura de uma loja quando, por cima de uma pilha de papéis mal mortos, finalmente dei com algumas folhas que valiam a pena. É engraçado como as mulheres com filhas pequenas derretem feições para os homens com filhos pequenos, nos breves cruzamentos da vida em dias de folga. O contrário também deve acontecer. Mas, de facto, a partir do momento em que peguei no livro amarelo, eu já não estava ali para mais nada, nem para mais ninguém, porque primeiro foi a primeira frase, depois foi o primeiro parágrafo, a seguir a primeira página, e depois as segundas oportunidades, e as terceiras, e as restantes, até que, por fim, o livro me acabou mãos, mas não me vai sair tão cedo ideia. Nem creio que alguma vez vá sair de todo, tal foi o impacto da prosa, sem espartilho, toda nua.
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Michel Renault, o discreto mas flamejante narrador, vai ficar a bater cá dentro pela sua condução sem travões, da história e da linguagem. E pelas indicações que foi disseminando, enquanto leitor: “viver sem literatura é perigoso, obriga a pessoa a viver a sua vida, o que comporta realmente muitos riscos”.
Plataforma, Michel Houellebecq - Relógio d´Água 2014

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