domingo, 10 de junho de 2018

CANADÁ

Havia três semanas que o cabelo sentira na pele a língua afiada da tesoura. E se compusera, como um homem, em redor do crânio. Aos 21 dias de vida o penteado novo perdera o corte e o dono do escalpe, ciente da sua ruína, reservara vaga no cabeleireiro para a tarde de uma terça-feira em fins de Novembro. Antecipou-se sem motivo aparente à marcação e chegou com uma hora de antecedência. Felizmente na outra ponta da rua há uma livraria, o que é uma excelente notícia para o tempo livre, ou paras as horas aparentemente mortas.   

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Encontrado na estante como se encontra o número da lotaria, à sorte, o livro Canadá, de Richard Ford, não mais voltou ao lugar de onde tinha sido retirado, e assim ficou uma fileira de livros como quem fica quando perde um dente da montra. 
De súbito, a vida de Dell Parsons, um adolescente, puxava o leitor para dentro da história, pelo que não restou, ao leitor, outra hipótese que não a de puxar por uma nota de 20 euros da carteira, e de apontar o passo, enviesado, ao cabeleireiro, com metade do olhar no chão e a outra nas páginas,num correctíssimo número de equilibrismo, isto depois de se ter sentado muito entretido com ele numa oportuna peça de mobiliário, um sofá preto em pele.

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E foi ficando, quem o leu, já depois do cabelo aparado, na simplicidade de quem escreve como se estivesse a dizer de memória, o que para alguns é pobre e para outros é o isco necessário. Enquanto se podava a cabeleira a história fora pousada em território dos Estados Unidos e não se vislumbrava ainda o caminho que levasse ao lado de lá fronteira, nesse mistério a que todos chamam norte.
Canadá, Richard Ford, Porto Editora, 2014

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