domingo, 10 de junho de 2018

STONER

A melhor parte das idas ao supermercado nunca vem na lista de compras por onde me encaminho, através da letra da Raquel, uma caligrafia azul e arredondada, por entre os corredores do labirinto. Sigo por norma aqueles bilhetinhos assertivos, caso contrário perco-me da intenção inicial, entro naquela zona do esquecimento, esqueço-me. Do arroz, da carne ou da fruta.  Acredito que a melhor parte de qualquer minuto de vida ainda não está escrita como um endereço em parte nenhuma. 
Acredito que um livro pode demorar 40 anos a nascer. Já acreditei mais, mas continuo a acreditar, naquela justiça que tarda mas não falha, por mais tardia que venha, por vezes depois da vida ter encontrado epílogo, morrido.  


image

Quem chama por mim, do alto da prateleira, numa fila da espessura de uma ripa, com cartapácios de receitas de um lado e histórias infantis do outro, é um livro cuja capa consiste numa torre de onze livros, com um título, Stoner, e um autor, John Williams. Logo me vejo, espreitando as linhas que o escritor coseu às páginas, dentro no ano de 1910, na Universidade do Missouri, e me ponho no encalce de William Stoner, que acompanho de imediato ao longo dos dois primeiros capítulos, trinta nove páginas na edição portuguesa. E só aí, todo tomado pelo desenrolar dos acontecimentos, desarmado enquanto aspirante a escritor e rendido enquanto leitor, fecho o livro, não querendo continuar a leitura totalmente no escuro, procurando informação que até aí não tinha sobre o responsável por todo aquele meu espanto, John Williams. Percebi perfeitamente a contracapa, elas são todas feitas como os endereços são feitos, querem de nós que não nos percamos no caminho, que vamos aonde elas nos querem levar. É certo que espreitei, mas se não o tivesse feito, neste caso estou seguro de que não precisaria do lugar onde os livros terminam, de o ter enquanto cão-guia, para perceber perfeitamente o que a New Yorker quis dizer, quando disse que este (Stoner) é “o melhor romance americano de que nunca ouvimos falar (…) não está destinado a ganhar concursos de popularidade. Mas vai perdurar no tempo, iluminado por dentro”.   


image

Tem-me a vida feito chegar alguns dos melhores momentos em circunstâncias tardias, foi assim por exemplo com a chegada do meu filho ao mundo. Certos livros também me apanham na prodigiosa curva do inesperado, como  me aconteceu com este (Stoner), em janeiro de 2015, quase 50 anos depois de ele ter sido escrito e de ter passado transparente pelos leitores, mais de 20 anos depois da morte de John Williams. Larguei Stoner para comer e dormir. Dei conta dele num fim-de-semana intenso. Esses dois dias continuam a andar comigo, tanto é o que trago de William Stoner na minha memória , logo eu, incapaz de dar conta de um recado sem esquecer alguma parte pelo caminho, para o que que me valho da letra azul e arredonda da Raquel.
Stoner, John Williams - D. Quixote, 2014

Sem comentários:

Enviar um comentário

THE HEART OF SATURDAY NIGHT

Quando, a meio da década de 1970, Eleanor Bloom, crítica literária e editora do suplemento cultural do prestigiado jornal londrin...