O outono entrara em Penafiel há poucos dias e ali estávamos nós diante das pedras de um muro, que o sol ainda conseguia ver, a desvendar o produto final do trabalho de serralharia nas folhas de chapa, o recorte, e a perceber no vazio desses quadrados de metal os rostos dos escritores homenageados pela Escritaria.
No fim da linha de ferrugem dos retratos, Lídia Jorge, a segunda mulher daquela família de gente bem conseguida entre a palavra e o texto. Antes dela houvera espaço para Agustina, entre Urbanos, Saramagos, Coutos, Carvalhos e o mais relevante dos Antunes da prosa.

Registei primeiras impressões no diário. Percebi que passara quase um ano desde a data da dedicatória (5 de Outubro de 2014) até ao dia em que o punha na carreira de tiro das minhas leituras. Os livros aguentam-se com as minhas luas. Há os que chegam, vêem e vencem (findam) . E os que chegam e ficam guardados como se estivessem a precisar de lume e cozedura antes de poderem ser alimento.
Mas sobre as primeiras impressões, no dia em que comecei a ler Os Memoráveis, escrevi as linhas que acontecem daqui em diante no resto do parágrafo: no livro que comecei a ler hoje encontrei uma senhora escritora; uma história que parece que não vai a lado nenhum, mas que na verdade vai ocupando o leitor, ao ponto de o leitor, dando por ele, escolhe permanecer onde a palavra é lavrada, em vez de ir ao mundo, saber de carne e de osso; encontrei o país das minhas fraldas de pano, que ainda não sabia o que era tugir nem mugir, o país; encontrei 1974 como 1974 nunca me tinha sido apresentado; encontrei jornalismo e literatura; e em certa medida, encontrei-me.

Nada na vida nos prepara para o encontro com algumas frases. Como quando alguém diz “aprendi no deserto que na poeira se encontram escritos livros inteiros”. Ou então, sem estragar o livro a quem ainda não passou por ele, a parte em que “um velho árabe disse que toda a vida passada e toda a vida futura se encontravam escritas no pó”.
Leio então a poeira das memórias. O outono entrara em Penafiel há poucos dias e ali estávamos nós diante das pedras de um muro que o sol ainda conseguia ver. A última daquela fila de escritores sentou-se num banco de um restaurante e serviu-nos o sumo da arquitectura do livro, pela mão que tinha estado lá dentro a mexer a história. Não interessa por que manobras do destino, um exemplar de Os Memoráveis veio ter comigo seis meses mais tarde, em Fafe. E cinco meses depois de Fafe, fui ter finalmente com ele. Em boa hora.
Os Memoráveis, Lídia Jorge - D.Quixote, 2014
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